O MESMO FILME... SÓ QUE OUTRO
Relançamento do polêmico Calígula é 100% refeito com material completamente inédito
Por Átila Soares da Costa Filho

Calígula (Malcom McDowell) e Cesônia (Helen Mirren): Superprodução épica busca “nova chance” ao valorizar o trabalho de cena, antes eclipsado em meio a frenesi erótico (IMAGEM: WGCZ).
Já se vão 45 anos desde quando várias salas de cinema mundo afora apresentavam ao público o que viria a ser a projeção mais controversa da História. Em nosso país, ainda que a Censura Federal houvesse distribuído tarjas tapa-sexo nas inúmeras cenas de nudez, a película ítalo-americana de 1979 teve muito combustível para queimar quando, assim, tentou elevar o hardcore à condição de obra de arte. O projeto, assinado pelo papa do entretenimento adulto europeu, o italiano Bob Guccione, empreendedor e editor da Penthouse Magazine, ainda voltaria à polêmica no Brasil em 1992: Quem era vivo deve se lembrar de quando a extinta rede paranaense OM (Organizações Martinez), após insaciável campanha publicitária de anúncio na recém inaugurada televisão, se viu judicialmente obrigada a interromper ao vivo a película – sem dúvida, um dos capítulos mais inusitados da História da TV brasileira.
Originalmente, o ambicioso e arriscado projeto de contar como a decadência moral pode destruir um império através do depravado Gaius César Calígula (12 - 41 A.D.), saíra do rascunho graças ao produtor Franco Rossellini, e foi ganhando forma com o talento do designer de produção Danilo Donati, cenógrafo e figurinista com várias parcerias ao lado de Franco Zeffirelli e Frederico Fellini. Atores internacionais e renomados do teatro shakespeariano foram
escalados para o sui generis épico, como Peter O'Toole (Tiberius), Malcom McDowell (o personagem-título), Hellen Mirren (Cesônia) e John Gielgud (Nerva). E ainda havia a modelo e atriz britânica em ascenção, Teresa Ann-Savoy, que, como com Helen Mirren, também ganhará maior atenção nesta edição, encarnando a irmã de Calígula, Júlia Drusilla - com quem mantém um relacionamento incestuoso. A propósito, Ann-Savoy vinha sendo a aposta natural como substituta de Maria Schneider na temática erótica do Cinema. Estrela do tórrido O último Tango em Paris (1972), Schneider decidira manter todo afastamento com relação à tônica, tendo em vista a participação pra lá de traumática com que havia lidado no filme de Bernardo Bertolucci ao contracenar com Marlon Brando.
Quando a marca Penthouse passa para a tcheca WGCZ Ltda. em 2018, o historiador do Cinema e produtor, Thomas Negovan, é convidado pela nova proprietária a visitar um depósito repleto de latas velhas com negativos originais jamais vistos, situado em Los Angeles. Dirá Negovan ao The Independent: "Ninguém havia revisado essas caixas há décadas. Eles sabiam que estavam lá, mas nunca as haviam aberto". Assim, estava aceito o desafiador – e pioneiro -projeto da organização de 96 horas de cenas inéditas no intuito de se “recuperar" a versão original do diretor Tinto Brass. À época, o diretor (cujo “Tinto” vinha de "Tintoretto", apelido dado pelo avô em alusão ao pintor renascentista) havia sido demitido pelo produtor Bob Guccione por diferenças de conceito sobre qual linha narrativa deveriam tomar: Brass queria uma tônica mais homossexual, sem sexualizar tanto o resultado final - o que se chocava com os interesses de Guccione, que intencionava algo mais "democrático” e "intenso” (aspas minhas). Já a razão para os desentendimentos entre Brass e seu colega de bastidores, o romancista e ensaísta Gore Vidal, se deram por este último abordar a loucura do infame imperador como um efeito colateral do poder; do contrário do que planejara Brass, que enxergava sua insanidade mental como algo que sempre estivesse lá. Com tudo isto, Calígula parece se tornar único por duas inusitadas razões: ser a primeira produção em nível hollywoodiano recheada com hardcore. Este, mais ou menos habilmente enxertado na edição final, com a participação das “pets” (a contrapartida de Guccione às “coelhinhas” da concorrente Playboy). Feito às escondidas, sem que o elenco principal soubesse, a audácia do produtor lhe sairia caro com o montante de processos judiciais movida por parte da equipe. Mas a peculiaridade de Calígula também se dará por outro motivo, menos escandaloso: Agora, este passa a ser o único filme da História capaz de se autogerar uma espécie de “anti-ego".
Utilizando-se da I.A. na restauração e composição de várias tomadas, e tendo a trilha sonora substituída (sai Bruno Nicolai e entra Troy Sterling Nies), a empreitada levou quatro anos de
labuta. Mas este “Ultimate Cut" não tardou a contabilizar mais polêmica após a estreia em 2023 no Festival de Cannes (como com o original em 1980), e em salas de cinema de vários países. Tinto Brass, o diretor antes que Guccione tomasse as rédeas do projeto em 79, já declarou: "Depois de inúmeras e infrutíferas negociações que se seguiram ao longo dos anos - primeiro com a Penthouse, e depois com outros obscuros personagens - para editar o material que eu filmei e que foi encontrado nos arquivos da Penthouse, foi criada uma versão da qual eu não participei e que estou convencido de que não refletirá minha visão artística. [...] O público de Cannes será, portanto, enganado pelo uso arbitrário do meu nome". Com toda a franqueza, a verdade é que esta nova versão não poderia ser considerada nem restauração daquela de Brass - pois o mesmo sempre fora afastado da montagem final... tampouco pode ser tida como de autoria de Vidal, já que seu roteiro jamais foi filmado tendo em vista o próprio já ter abandonado o posto diante do barril de pólvora o qual a produção se tornara.
Seja como for, por aqui, o relançamento (ou seria “lançamento"?) deste Calígula está programado para o próximo 5 de dezembro - em plena onda “romana", graças ao novo Gladiador de Ridley Scott que, por sinal, parece beber da água dos trejeitos hiperbólicos de Malcom McDowell nas figuras dos imperadores-irmãos Geta e Caracalla. Aliás, assistindo à seqüência de Scott, impossível não se lembrar de McDowell diante da caracterização e trabalho de cena de Joseph Quinn, que interpreta Geta; assim como da referência a um Tiberius desfigurado pela sífilis, por meio do rosto maquiado de Fred Hechinger, que dá vida a Caracalla.
Caligula – The Ultimate Cut, muito provavelmente, não servirá para “redimir” o original de seus excessos nem resgatar uma suposta obra-prima oculta no mesmo, entretanto, poderá expandir e discutir como apreendemos a unicidade de um filme: Sim, uma criação tem um autor, aquele que a concebe e constrói; mas é bem verdade também que a impressão sobre este produto tem múltiplos “autores" - nós, os consumidores, que a processamos e a reconstruímos em nossas mentes. O exercício de imaginação de Negovan, longe de ser algo infrutífero ou pretensioso, vem mais como uma sincera e válida demonstração de que o Cinema é, sobretudo, a capacidade artística de se trabalhar a realidade com outras visões. E, especificamente aqui, escolheu-se uma realidade alternativa a apontar como Calígula poderia ter sido 45 anos atrás.
* Prof.Átila Soares da Costa Filho é bacharel em Desenho Industrial (PUC-RIO) e pós-graduado em Filosofia, Sociologia, História da Arte, Arqueologia, História da América, Patrimônio, História e Antropologia. É membro do comitê científico na Mona Lisa Foundation (Zurique), na Fondazione Leonardo da Vinci (Milão), e no Centro Studi Leonardeschi (Varese, Itália). Ainda faz parte do conselho acadêmico na revista internacional técnico-histórica
Conservation Science in Cultural Heritage, publicada pelo Departamento do Patrimônio Cultural da Universidade de Bolonha e La Sapienza (Roma), e no Comitê Nacional para a Valorização do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Roma).