Produção muda o tom da obra clássica de Boccaccio para realidade alternativa sem prejuízos
Átila Soares da Costa Filho - Colunista de Artes
Licisca (Tanya Reynolds) e os “exilados": coleção de contos medievais sob a égide de imensa crise moral ganha contornos MTV (IMAGEM: Giulia Parmigiani / Netflix - 2024).
Enquanto descrevia os horrores da Peste Negra que assolava a Europa já a partir de 1347, o poeta florentino Giovanni Boccaccio (1313-1375) decidia direcionar o cenário de morte e caos para um novo contexto que dividiria para sempre a Literatura românica: É a Natureza, e não mais Deus, a autora de nossos desejos, caráter e destino. O Decameron - título do grego antigo que significa "Dez Dias”, e escrito entre 1348 e 1353 -, desde sua gestação, para além do multifacetado enredo, também tinha a impiedosa pandemia como pano de fundo real. Escrito em dialeto toscano, é um marco humanista e do realismo: o fim da Idade Média e o alvorecer da Modernidade.
Por aí, Boccaccio nos apresenta, ao longo de suas ácidas linhas, dez jovens de Florença, todos refugiados da Peste, que decidem se abrigar num castelo campal. Para melhor passar o tempo - e sob uma sugestão de Pampinea -, o grupo decide, a cada dia, eleger um rei / rainha para sugerir um tema qualquer a fim de encorajar os demais a narrarem causos afins: serão 100 histórias ao todo, durante 14 dias.
Entretanto, a minissérie da Netflix, idealizada pela produtora-executiva Kathleen Jordan, nos permite experimentar algo tal qual uma “brecha no tempo-espaço”, um “Decameron-verso” que nos revela como tudo poderia ter sido, já que a fonte narrativa é tão rica para novas possibilidades. O grupo dos 10 jovens nobres (7 moças e 3 rapazes) agora é um grupo eclético, incluindo representantes das classes menos providas, como a serva de Filomena, a subserviente Licisca - curiosamente, ainda que a personagem seja uma criação exclusiva para a série, sua intérprete, a britânica Tanya Reynolds, é quem traz a performance mais afinada à imagética do humor italiano de costumes.
Outro fator determinante é que as histórias aqui, antes narradas em terceira pessoa pelos protagonistas da obra original (e em tantas outras versões dramatizadas, sendo a de 1971, de Pier Paolo Pasolini, a mais emblemática), agora ocorrem em tempo real, sem flashbacks, com os próprios refugiados como protagonistas praticamente únicos em cada sub-trama. Na verdade, este Decameron da era da Covid (infelizmente, ela ainda não foi erradicada) e do reality, assume uma faceta Big Brother num contexto e linguagem bastante teatralizados. E, a julgar pelo modesto - em razão do caráter claustrofóbico do enredo -, mas funcional trabalho nos cenários e figurinos (sob autoria de Erica Facchini, Luca Ferretti, Gabriella Pescucci e Uliva Pizzetti), toda a fórmula acaba por resultar, não apenas numa obra curiosa, mas única no catálogo do serviço de streaming.
Como entretenimento, talvez melhor indicado aos entusiastas de Literatura clássica ou admiradores de erudição, Decameron vale para provar que certas obras nasceram para serem exploradas e reinventadas. O próprio Boccacccio imaginou vertentes inéditas para sua obra-prima ao longo do processo criativo; então, o que a minissérie faz é tentar responder à questão: O Decameron tem todo esse poder de autopoiesis? A resposta, entretanto, apenas poderá ser respondida pelo público, ainda dividido a respeito. Talvez, assim como a diversidade de narrativas e visões de mundo do grupo confinado, uma definição mais crítica para esta versão da Netflix não deva ser algo mais objetivo de se compreender, mas atemporal, assim como as paixões, os vícios e a nobreza em cada um de nós.
Agradecimentos à Valéria Vicentini
Átila Soares da Costa Filho